A família em peso estava reunida na sala naquele domingo, dia 7 de junho, em torno da TV – um aparelho em cores, recém-lançado no mercado, que o meu pai havia comprado especialmente para assistirmos à Copa de 70.
Sob o sol abrasante do meio-dia, horário exigido pela TV mexicana, Brasil e Inglaterra entravam em campo para o confronto mais esperado da competição, pela segunda rodada das Oitavas.
Nossa seleção vinha de uma contundente vitória sobre a Tchecoslováquia, por 4 a 1. A Inglaterra batera a Romênia por um magro 1 a 0. A partida, portanto, praticamente definia uma vaga para as Quartas de Final.
A seleção inglesa campeã do mundo entrava com força máxima: Moore garantia a zaga, Bobby Charlton dava um toque de classe ao meio-campo, enquanto Hurst, no ataque, o único atleta a marcar três vezes em uma final de Copa do Mundo, era a grande promessa de gols.
O Brasil, por sua vez, vinha a campo desfalcado de uma de suas principais peças de criação. Gérson, o canhotinha de ouro do bicampeonato carioca conquistado pelo Botafogo – já naquela época jogador do São Paulo – ficou de fora da partida por conta de um estiramento na coxa. Zagalo, técnico da Selefogo de 67-68, optou por recuar Rivellino para a armação, escalando Paulo Cézar Caju como um ponta-esquerda que por vezes recuava para a recomposição do meio de campo defensivo – precisamente a mesma função que o jogador exercia na equipe alvinegra bicampeã.
O Botafogo ainda se fazia representar em campo pelo artilheiro Jairzinho, que, na estreia, havia marcado duas vezes.
O jogo começou tenso. A Inglaterra dominava o meio, avançando com jogadas pelas laterais. O Brasil tinha dificuldades na saída de bola, errando muitos passes.
Nervosismo na casa. Meu pai roía as unhas, eu rodava pela sala; minha mãe, ansiosa, preferiu ir tratar de outros assuntos na cozinha; e só minha avó, imperturbável em sua cadeira de balanço, inocentemente cochilava.
A ansiedade tinha razão de ser. Nossa defesa não inspirava confiança. A pressão da equipe adversária aumentava. Em duas ou três oportunidades, os ingleses estiveram perto de abrir o placar.
Aos dez minutos, no entanto, depois de muito sufoco, o Brasil deu o ar de sua graça. Jairzinho achou finalmente um espaço pela direita, foi ao fundo e cruzou na cabeça do dez canarinho.
Pelé cabeceou de olhos abertos, para o chão, na segunda trave. Um lance perfeito, uma jogada de mestre.
Meu pai se ergueu do sofá. Minha mãe acorreu aos gritos, limpando as mãos no avental. Minha avó cabeceou, ainda sonolenta. A bola ia morrer no cantinho. O autor da jogada já comemorava.
Então o milagre sobreveio. Gordon Banks, arqueiro inglês, voou espetacularmente de um lado a outro da meta, dando um tapa preciso na bola, por baixo; a pelota, caprichosamente, subiu rente à trave esquerda e saiu por cima da baliza.
Um grito de espanto percorreu a sala. Era quase impossível acreditar. A jogada foi tão rápida – e o toque, tão sutil – que o árbitro sequer marcou escanteio.
O gol perdido esfriou a seleção canarinho. Minha avó voltou a cochilar. Os ingleses seguiam rondando a nossa área. Moore pontificava na defesa; Charlton ajudava a anular o nosso ataque.
No intervalo, estávamos descrentes. O gol inglês parecia questão de tempo. A segunda etapa, contudo, desmentiu os nossos receios.
O escrete brasileiro veio com tudo. Rivellino começou a acertar os passes. Paulo Cézar e Tostão, que caía pela esquerda, ajudavam a abrir a defesa dos leões.
Aos 14 minutos, a insistência foi premiada. Tostão recebeu a sobra na esquerda; nosso PC puxou a marcação. O craque do Cruzeiro ganhou de Mullery na raça, canetou Moore, deixou Wright no chão, fez o giro sobre Moore na recuperação e achou Pelé livre na área. Marcado por dois, o Rei do Futebol fez o mais simples. De cabeça erguida, como convém aos craques, rolou a pelota para a direita. Jairzinho vinha com tudo e encheu o pé, vencendo Banks.
Gritos na casa, na rua, no bairro inteiro. Socos no ar, abraços. Minha avó resmungava, quase sufocada, porque eu me pendurei com toda a força em seu pescoço. O Brasil desencantava, vencendo o ferrolho inglês.
A Inglaterra bem que procurou dar o troco. O técnico Alf Ramsey tirou Charlton e Lee, já cansados, para dar um novo gás ao time. Os leões, contudo, insistiam nos cruzamentos para a área, devidamente neutralizados pela nossa defesa. No jogo de abafa, por vezes, a bola acabava sobrando para um atacante inglês; mas a pontaria dos camisas-brancas não era das melhores naquela tarde. Astle, que entrara no segundo tempo, perdeu um gol cara a cara. Ball, meio-campista dos leões, carimbou o travessão em uma oportunidade; e, já no fim do jogo, com o gol aberto, chutou por cima.
O Brasil, por sua vez, não abdicou da partida; em mais de uma ocasião, Banks foi obrigado a trabalhar, salvando a sua equipe em tirambaços de Paulo Cézar, Rivellino e o nosso Roberto, que entrou aos 32 minutos no lugar de Tostão, completando a tríade alvinegra.
Apesar da insistência dos ingleses, veio o apito final, com a vitória da nossa Seleção; e com a certeza íntima de que, depois daquela exibição, podíamos confiar no tricampeonato.
De certo modo, o que veio depois: as vitórias sobre o Peru, o Uruguai e a goleada final sobre a Itália, que culminou com o gesto imortal do capitão Carlos Alberto, erguendo em definitivo a Taça Jules Rimet – tudo estava ali, naquele jogo, naquela sala, em frente à TV colorida, na tarde ensolarada de um domingo de junho.
E agora, que o Botafogo bate recordes na Seleção, teremos finalmente o retorno de uma época de glórias – e um novo tempo de conquistas?
Rodrigo Rosa é um botafoguense roxo que agora também vem na versão verde-amarela. Confira mais em www.novaescrita.art.br