Ontem pensava em que assunto abordar na crônica da semana. O tropeço na última rodada contra o Cuiabá ficou, como o grito de gol, preso na garganta dos botafoguenses.
Seria esse um tema oportuno, às vésperas de tantos jogos decisivos? Avivar a frustração dos leitores, ruminar descontentamentos, alimentar decepções?
A expectativa me angustiou por um bom tempo. E então compreendi finalmente.
É disso precisamente que somos feitos, de anseios e perspectivas: essa é a vida de todos, a forja comum onde moldamos dia após dia a nossa existência.
O presente é pura insatisfação. O amanhã é vago, tênue, nebuloso. Mas temos de seguir. Despertar toda manhã para a mesma realidade. Lavar o corpo, lavar a alma. Vestir a roupa, despir o sono. Mergulhar com todos os nossos companheiros de jornada na pressa das ruas.
Os coletivos lotados. As vias engarrafadas. Buzinas, fumaça, calçadas cheias de gente. O salário magro no final do mês.
Meu Deus, afinal, por quê?
Porque o futuro é feito da mesma matéria imponderável dos nossos sonhos.
Porque somos apenas uma chance remota oculta no âmago do cosmos. Uma chance apenas. E é por ela que nos erguemos das sombras, é por ela que suportarmos as agruras e os choques de que nossa carne é plenamente a única herdeira.
Desde sempre. Desde cedo.
No fundo, não somos mais do que a esperança dos nossos ancestrais. O sonho da Humanidade inteira, que se renova a cada nascimento. Nas metrópoles. Nas pequenas aldeias. Nos bairros luxuosos das nações mais ricas, na periferia do mundo; nas avenidas chiques, nos becos e nas vielas vermelhas das comunidades pobres.
Aqui mesmo, ao nosso lado, na nossa vizinhança.
O menino ganha a primeira camisa de um clube. A primeira bola. Ajeita a esfera de plástico sob o olhar ansioso de seu pai.
Dá o primeiro chute. O menino magro de canelas sujas de barro nos campos ralos de um grande país marca o seu primeiro tento. Os amigos o estreitam em um abraço. O pai o aplaude de pé à beira das quatro linhas. Ele é o craque do jogo. O herói da partida.
Deitado na relva, depois da peleja, ele sonha o seu nome nas manchetes. Sonha as multidões lotando estádios, gritando por ele. O nome com que o pai lhe presenteou ecoa nas arquibancadas de concreto, enche os espaços, voa, chega até o exterior. E os sonhos, grávidos uns dos outros, se multiplicam em sua cabeça tonta de criança. Uma casa nova para a sua mãe. Um carro para o seu pai.
Uma outra vida, uma outra realidade. É o que sonha, deitado na relva, o menino que sonos todos, essa criança que é única e que é todo um país.
Crescemos todos para a promessa que fazemos nossa, ao mesmo tempo em que nos tornamos a esperança de muitos outros.
É o destino que pulsa em nosso corpo, que corre em nosso sangue.
Um futuro feito de tantos gestos, de tantas esperas.
A expectativa das mães que acendem velas no oratório tosco da soleira para que tudo corra bem com os seus filhos. A angústia do torcedor que rói as unhas antes do pênalti decisivo. O atacante que morde os lábios enquanto ajeita a pelota na marca de cal, o goleiro que se balança de um lado para o outro, esticando os braços, antecipando um milagre.
O futebol é o palco irreal de todas as promessas, de todos os desejos. O campo mágico onde reputações se firmam, onde carreiras brilham e colapsam, onde os vitoriosos se abraçam, onde os derrotados caem de joelhos, quando soa o apito final.
Um território fluido, impenetrável, por sobre o qual flutuam milhões de sonhos entrelaçados em uma grande rede invisível, fímbrias de gaze, fagulhas de cometas.
Em cerca de um mês, teremos o campeão brasileiro do ano de 2024.
Em cerca de quinze dias, conheceremos o vencedor da Libertadores da América.
Vivemos um sonho duplo, habitamos essa zona mista de expectativas e de anseios.
Todos nós, botafoguenses, somos feitos de uma esperança imortal.
Rodrigo Rosa é também a esperança de uma Nova Escrita. www.novaescrita.art.br