A segunda rodada do campeonato de futebol de várzea de Nova Friburgo, edição 1979, bem que prometia. O Boqueirão recebia a equipe do Grota Funda[1] para mais um fervoroso embate, num verdadeiro espetáculo do esporte.
Sacudimos durante mais de uma hora na caçamba do caminhão de entregas do Presidente do clube – que nas horas vagas atuava na cidade como construtor – serpenteando por uma estradinha de terra que se esgueirava entre abismos e barrancos.
O certame se desenrolava em dois turnos, bairro contra bairro, o que nos obrigava muitas vezes a longos deslocamentos que tomavam parte das manhãs de domingo.
Nosso time desembarcou nos fundos do terreno que abrigava o campo de jogo, uma espécie de charco mal drenado, coberto de ervas ralas.
Já na chegada, sentimos o clima da partida. As cercanias do relvado estavam repletas de torcedores afoitos, que se espremiam à beira das linhas laterais, uma vez que não havia propriamente arquibancadas, nem sequer um muro de contenção.
A Comissão Organizadora providenciava o transporte do árbitro da partida. E ele não tardou a chegar, em um imponente fusca 69 cor de creme.
Os times se distribuíram em campo. O apito inicial foi dado; e a bola começou a rolar para a peleja.
Nessa época, eu tinha dezessete anos. Minha função na equipe variava segundo a ocasião. Normalmente, eu jogava como segundo homem do meio de campo; às vezes, quando o ponta-esquerda faltava, por conta dos excessos etílicos do sábado, eu era deslocado para a posição.
Naquele dia, por acaso, entrei em campo com a onze. Nosso time deu a saída. Corri junto à linha lateral. A bola veio em minha direção. Estufei o peito para a matada; e essa foi a última coisa de que me lembro.
Senti um choque; e, quando dei por mim, estava rolando na estradinha que margeava o campo, perguntando pela placa do caminhão que me havia atropelado.
Custei a perceber que tinha sido abalroado pelo lateral-direito do time da casa, que resolvera apresentar armas logo de início, para impor respeito.
Qual não foi a minha surpresa quando, de volta ao campo de jogo, vi o árbitro fazer sinal de arremesso lateral.
Indignado, apressei-me a perguntar qual era o critério de falta que o juiz adotaria durante a partida, só por desencargo de consciência.
– Abaixo de lesão corporal grave, o senhor vai marcar alguma coisa?
A tônica do jogo estava definida. E a coisa seguiu por esse rumo. Nos primeiros quarenta e cinco minutos, o árbitro, insuflado pela torcida adversária, rasgou todo o regulamento da International Board, folha por folha, artigo por artigo – claro, quando a jogada era contra nós.
Saímos do primeiro tempo perdendo de um a zero, graças a um gol de bola parada em que nosso guarda-redes foi seguro pelo calção pelo centroavante adversário.
Infelizmente, nossos anfitriões não contavam com a nossa arma secreta: o efeito Antarctica. Depois de generosos goles de suco de cevada gelado, consumidos à beira do gramado durante o intervalo, costumávamos voltar com outro espírito para o segundo tempo. E foi o que ocorreu.
Já aos oito minutos, o Alemão, mestre de obras do nosso digníssimo Presidente, empatava de cabeça, depois de um bololô na área.
Surpresa nas gerais. A torcida, inconformada, começou a empurrar o time do Boqueirão para a frente. Empolgados, os atletas do time da casa se mandaram para o ataque, querendo resolver o jogo. E esse foi o seu erro.
Em uma rebatida da defesa, iniciei o contragolpe pela direita – uma ligeira variação tática que adotei, motivada pelo meu instinto de sobrevivência – avancei pela ponta, venci o beque na corrida e cruzei rasteiro.
Nosso centroavante mergulhou corajosamente, empurrando a pelota para as redes.
Dois a um para os visitantes. A confusão estava formada. Enquanto nos abraçávamos na linha central, os torcedores urravam de frustração.
A partida cresceu em emoção. Já um pouco fatigados pela ressaca da noite anterior, e por um inesperado efeito Antarctica rebote, recuamos para segurar o resultado, improvisando uma formação em cunha que Júlio César havia adotado em sua expedição à Gália.
Em meio a chutões de bico e balões para o mato, fomos nos aguentando a duras penas. A torcida, revoltada, começava a perder o prumo, atirando objetos no campo e xingando o juiz até a décima geração.
O árbitro sentiu a pressão. Seu repertório de erros parecia esgotado. É verdade que ele tentou de tudo. Inventou até um pênalti nos minutos finais. O centroavante do time deles, porém, desperdiçou feio, isolando a bola em um brejo cheio de touceiras de bambu.
A essa altura, a torcida uivava sinistramente. Comecei a temer por nossa integridade. Meus receios ficaram ainda mais fortes quando vi o árbitro, à beira do campo, pedir ao motorista do Fusca que fosse ligando o motor.
Por cautela, mandei avisar o nosso condutor. A partida estava nos acréscimos; o juiz deu o tempo que podia; mas os jogadores já estavam à beira da exaustão.
Em dado momento, o árbitro se aproximou da linha lateral, apitou o fim do jogo e desabalou em uma carreira desenfreada para o carro.
Foi a senha para o desastre. A torcida invadiu o campo, munida de paus e pedras. E nós corremos como loucos para o caminhão.
Subi na caçamba com o veículo já em movimento, os torcedores nos meus calcanhares. E acho que nunca dei um sprint tão rápido em toda a minha vida futebolística.
Nosso veículo de fuga chegou depressa à primeira curva; mas foi ultrapassado pelo Fusquinha cor de creme, que disparava como um foguete pela estradinha.
Já nos considerávamos a salvo, antevendo os goles da cerveja gelada que nos esperava no isopor, quando o inesperado aconteceu. Uma chuva de pedras começou a cair sobre a caçamba; os torcedores, conhecendo os atalhos da região, haviam dado a volta na estrada, e agora, de cima de um barranco, despejavam a sua ira sobre nós, na forma de uma tempestade de dolorosos pedregulhos.
Felizmente, tínhamos uma salvaguarda: enfiando-nos por baixo da lona grossa que servia para abrigar os tijolos e os sacos de areia, conseguimos suportar mais essa dura provação, até que os nossos agressores, finalmente, ficassem para trás.
Por que conto essa velha história, um pedaço de passado perdido na memória das gentes do interior? Bem, caro leitor, porque, a julgar pelos recentes relatos na CPI do Senado, creio que o esporte brasileiro nunca deixará a sua vocação de futebol de várzea, com suas manipulações, seus conchavos, seus dirigentes corruptos, suas arbitragens medonhas, seu canhestro amadorismo.
[1] Nomes fictícios
Rodrigo Rosa é um foragido da Nova Escrita www.novaescrita.art.br